sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Orlando Fuzinelli - "Jorge Guerreiro e seus amigos na terra do esquisito"

Orlando Fuzinelli – “Jorge Guerreiro e seus amigos na terra do esquisito”
                                                   
                                               Orlando Fuzinell -  A alegria de viver

         
    O poeta inglês William Blake escreveu: "Quem amarra a si uma alegria,/ Destrói a vida alada./ Mas quem beija alegria em vôo/ Vive no nascer do sol da eternidade". As telas do pintor Orlando Fuzinelli, sejam sobre o mundo rural ou sobre os 500 anos do Brasil, têm justamente essa capacidade de captar e transmitir a alegria da vida. Por isso, elas geram no observador, no mínimo, um sorriso bem-humorado.

            A pintura naïf de Fuzinelli está em harmonia com o mundo e o representageralmente por um viés crítico, marcado por um sorriso ao mundo circundante. Eventos cotidianos ou esporádicos ganham, em suas telas, novas dimensões, geralmente marcados por uma ingenuidade estética valorizada pelo senso preciso da combinação de cores e formas.

            Nascido em Jurupema, SP, em 23 de julho de 1948, Fuzinelli começou, ainda criança, a desenhar com carvão no papelão e nas paredes da casa de tábua da fazenda em que morava. Apenas aos 22 anos ele se mudou para a cidade e, seis anos depois, mudou-se para São José do Rio Preto, SP, onde, incentivado por amigos, começou a mostrar o seu trabalho no Salão de Inverno local, em 1986.

            Fuzinelli lembra de seu começo na pintura. "Trabalhei com látex com bisnagas e até tinta de tecido. Como o solvente da tinta óleo me dava enjôos, utilizo tinta acrílica. No início da carreira, pintava mais cenas rurais, tema que já não é tão freqüente como antes", conta. Quando via um trabalho acadêmico, queria fazer igual e saía um desenho quase infantil. Além disso, as pessoas olhavam para os meus quadros dizendo que o filho fazia melhor. Na época, porém, eu nem sabia que tinha esse negócio de primitivista, cubista e expressionista."

            Ao se identificar com a corrente primitivista ou naïf, Fuzinelli começou a divulgar por conta própria o seu trabalho. "Escrevia cartas para todos os lados e mandava quadros e fotos para diversos salões de artes. Às vezes, era cortado; outras vezes, aceito; e diversas vezes, premiado", relembra.

            Entre as honrarias, incluem-se dois primeiros prêmios, em 1991 e 1992, no II e III Concursos de Pinturas a Óleo sobre Tela, respectivamente no XXVII e XXVIII Festival de Folclore de Olímpia, SP; e, em 1995, o Prêmio de Melhor Pintura no XI Salão de Artes Plásticas Contemporâneo de Presidente Prudente.

            O artista participou ainda das Bienais Naïfs do Brasil, organizadas pelo SESC Piracicaba, em 1996, 1998 e 2000. Liberdade para freiras num piquenique, exposta em 1996, revela toda a alegria de Fuzinelli. Dezenas de diminutas freiras aparecem espalhadas pela tela, realizando as mais variadas atividades.

            Elas surgem comendo numa mesa tipicamente naïf, sem perspectiva alguma, andando a cavalo, de bicicleta e pulando corda. A cena é intensa na alegria que transmite por tratar, com cores fortes, o momento de lazer das freiras. O entusiasmo é extravasado em cada imagem, localizada num ambiente paradisíaco, com montes ao fundo e pássaros sobre árvores.

            Após trabalhar 33 anos como funcionário público, hoje aposentado, Fuzinelli se inspira no noticiário diário e com o que acontece no mundo, observando o que é feito não só pelos naïfs, mas por todo tipo de artista. "Conhecer bem a história brasileira, seu folclore, ditados populares e costumes também é muito importante", diz.

            Com essa filosofia, Fuzinelli já tem quadros com colecionadores da Alemanha, Dinamarca, El Salvador, EUA, China, Canadá, Inglaterra, Nova Zelândia, Portugal e Suíça. De fato, é difícil resistir a telas como O paraíso de Adão e Eva, exibido na Bienal Naïfs do Brasil de 1998, que mostra as personagens bíblicas no centro de numerosos círculos.

            Ao redor do círculo central, há numerosos animais, como elefantes, corujas, cavalos, onças e galos, além de frutas, como a melancia. Do lado esquerdo, há peixes e aves; e, do direito, macacos e um jaburu, imponente. Essa representação de diversos animais, próximos ao Paraíso, até desviam o olho da imagem central, uma cobra oferece a maçã a Eva.

            No canto superior esquerdo, surge parte de um sol, enquanto a lua e uma estrela são pintados em amarelo. Esses elementos de forte expressão simbólica até ficam em segundo plano perante as telas totalmente preenchidas que caracterizam alguns dos trabalhos de Fuzinelli. Essa riqueza de imagens, nada caótica, é articulada por um profundo senso de composição, próprio da linguagem pictórica do artista.

            Na Bienal Naïfs 2000 de Piracicaba, SP, Fuzinelli mostrou dois quadros:Brasil 500 anos de história e Brasil de Cabral a Cardoso. O primeiro mostra, no centro, uma cena do descobrimento, cercada por quatro imagens de cenas emblemáticas do país, como a primeira missa e o Grito do Ipiranga de Dom Pedro I. Em volta do círculo central, imagens de índios, preenchendo a tela e deixando poucos espaços para o olho do observador descansar.

            No segundo, uma bandeira nacional é estilizada e, dentro do losango amarelo com a legenda "ordem e progresso", surgem dois campos: o de cima mostra as caravelas lusas de Cabral; e o de baixo, o presidente Fernando Henrique Cardoso. Mais uma vez, a tela é quase totalmente preenchida por imagens que evocam a cultura indígena, o universo caipira e a nacionalidade.

            Em quadros como Enquanto o Halybop passa o tigre que escapou do circo rondava a colônia, de 1997, é possível ver a conexão do artista com o cotidiano. A passagem do cometa, um fato de repercussão mundial, é associada a um acontecimento local com naturalidade. O cometa passando, o gado preso, as casas dos trabalhadores rurais, uma bandeira do divino, uma coruja e um poço desproporcional em relação ao tigre estabelecem relações internas que surpreendem pela harmonia criada.

    Mesmo sendo o poço diminuto em relação ao animal fugido, não ocorre um choque estético. A tela, pelo contrário, encanta pelo poder de combinar elementos tão diferentes, como o mundo rural, um tigre e um cometa com o bom humor que caracteriza o artista, sempre pronto a ver de uma maneira toda especial a realidade.

    O dia que São Jorge apartou a briga dos dragões se encaixa nesse raciocínio de descrever o inusitado. Geralmente, o santo luta contra o dragão. Aqui, no entanto, é o ser divino, desproporcional em relação ao seu cavalo branco, que procura colocar a sua pequena lança entre os dois seres fantásticos que lançam fogo um no outro. Ao fundo, montes e uma bela casinha – com chaminé e tudo, numa imagem que introduz o nonsense e dá um toque pessoal todo especial à obra.

    Perante essa rica produção, o crítico Romildo Sant’Anna situa Fuzinelli no "universo singelo das vertentes culturais campesinas, espontâneas", enquanto Luís Ernesto Kawall, da Associação Paulista de Críticos de Artes e da União Brasileira de Escritores, considera o artista um "autodidata imaginoso, emérito intérprete do cotidiano rural", acrescentando que ele compõe as suas cenas com "técnica segura, cores vibrantes e sensibilidade flor do pincel".

    Diretor da Galeria de Arte do Cassino Estoril, Portugal, Nuno Lima de Carvalho completa esse raciocínio, destacando as "composições equilibradas, pormenores de grande sensibilidade e um inegável talento para a utilização das cores complementares". Cabe, porém, ao pesquisador de arte Guillermo de la Cuz Coronado identificar duas das maiores qualidades das telas de Fuzinelli: a singeleza e a simplicidade: "A singeleza qualifica a temática e a motivação evidentemente populares; e a simplicidade refere-se ao despojamento técnico, fora de qualquer ensinamento acadêmico".

            Fuzinelli tem uma marca registrada em seu trabalho: três cachorros, sendo dois pretos e um branco, que estão em todas as suas telas. Sua característica mais importante, porém, é a alegria das composições, alcançada pelo diálogo entre as cores quentes e pela escolha de temas geralmente engraçados ou, se comuns, como os mais rurais, geralmente enfocados sob uma ótica bem-humorada.

    Assim, as telas do artista beijam a alegria que carrega dentro dele e a leva adiante pela pintura. Ao fazer isso, como lembra Blake, não amarra a vontade de sorrir, mas a espalha e multiplica, transmitindo uma intensa alegria de viver, o que não é pouco na sociedade violenta e mal-humorada em que vivemos.

    Oscar D’Ambrosio é jornalista, crítico de arte e autor de Os pincéis de Deus: vida e obra do pintor naïf Waldomiro de Deus (Editora UNESP).

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